Eu, racista [26 de março de 2005, João Ximenes Braga em O Globo Online, enviado gentilmente ao meu email pela Yoná ] Tendo acompanhado o debate sobre cotas raciais nas universidades públicas, dei-me conta de que sou uma espécie em extinção, o último dos moicanos, um fragmento de DNA do pássaro dodô. Sou, enfim, o único racista do Brasil. Regozijem-se. Neste país, boa notícia não dá em árvore. Pelo visto, nem racista. Mas se saber que o Brasil tem um único racista é bom para todos, não é bom para mim, claro. Admitir isso não é fácil. Afinal, não compartilho de nenhuma ideologia que atribua a determinada etnia superioridade física ou intelectual sobre outra(s), nem daquelas teorias aparentemente simpáticas quando se trata de sexo ou música. Tenho plena confiança nas minhas faculdades mentais para afirmar que, estivesse eu em situação de selecionar candidatos a um emprego, não levaria a cor em consideração. Não faço piadas sobre afro-descendentes, nem mesmo levando em conta que esta é uma coluna de humor. Não costumo fazer piadas nem sobre Michael Jackson, pois todo o meu tempo disponível para mal falar de astros do pop é dedicado aos Beatles, já que isso irrita mais gente, e gente mais divertida de irritar. Aliás, pecado dos pecados, reconheço que sou politicamente correto. Só uso "preto" como adjetivo para designar a cor da roupa de quem é medroso ao se vestir, e não me lembro de jamais na vida adulta ter usado a palavra "crioulo" sem ser para falar do tambor-de-crioulo maranhense. Pensando bem, como tenho reduzido interesse por danças folclóricas, é provável que nem assim. Diante disso, seria simples eu me inserir no país de não-racistas em que vivo. Mas sei que sou racista. Diferentemente de quem diz que tudo é difuso num país miscigenado, sempre sei diferenciar quem é negro e quem não é. Negro é aquele que não arruma emprego em loja de shopping nem em restaurante. É aquele que, quando é médico ou jornalista, é visto como um indivíduo vitorioso por ter rompido a barreira. É aquele que é sempre o primeiro a ser parado numa blitz. Em tais situações, as nuances científicas das pesquisas nunca são levadas em conta, fica tudo negro e branco. Sei que sou racista pois, toda vez que subo num ônibus, automaticamente escaneio os passageiros e meu HD registra primeiramente os negros, passa suas imagens por um sofisticado banco de dados onde se analisa roupas e atitude, antes de decidir se continuo no veículo ou se desço no próximo ponto. E toda vez que passo na praça do Jóquei e vejo algumas dezenas de adolescentes negros maltrapilhos, imediatamente me desvio do centro e me aprumo de forma a não olhar para eles mas ainda assim perceber qualquer movimento em minha direção. Também sei que sou racista quando, ao ceder o banco no ônibus, faço questão de dar preferência a uma senhora negra mal vestida, pois presumo que ela seja empregada doméstica e tenha ficado mais tempo em pé durante o dia que as senhoras brancas. Sei lá, talvez se eu comprasse um carro e parasse de andar de ônibus, eu até deixaria de ser racista. Pode-se dizer que, por uma série de questões históricas, tantos desvalidos são negros, tantas domésticas também, tantos moradores de rua idem, tantos fora-da-lei idem ibidem. Tudo mera coincidência histórica, né?, já que o Brasil não é racista. Portanto, desviar de um adolescente negro sem camisa é apenas uma questão de autoproteção. Não se trata de ele ser negro, mas pobre. Só que o ser negro é o mais forte indicativo de sua situação social. Coincidência histórica, né? Independentemente das explicações sociais, contudo, toda vez que analiso os negros no ônibus (ainda bem que ninguém mais faz isso, né?) estou fazendo "racial profiling". É tomar a raça como base de suspeita. É racismo. Sou, portanto, racista. Sempre achei que eu reagia assim por atavismo, por viver num país, e especificamente, numa cidade racista, onde todo mundo jogava o mesmo jogo. Em dezembro, quando a ActionAid e um grupo de ONGs lançaram a campanha "Onde você guarda o seu racismo?", respondi mentalmente à pergunta: "Junto do meu crachá de carioca, pô". Mas, como disse lá em cima, com o andar do debate sobre as cotas raciais nas universidades, tenho lido tanto em artigos quanto nas cartas de leitores que o racismo inexiste no país. Foi uma descoberta e tanto. Como não tenho dados para contestar pesquisas e opiniões mais avalizadas que a minha, só me resta reconhecer: E pelo andar da carruagem, se o Jean ganhar o "Big Brother", possivelmente me verei obrigado a reconhecer que sou também o único homofóbico. |