Tenho a informar que arquivarei a partir de hoje, espero que para todo o sempre, esta máquina de escrever na qual venho juntando palavras como Deus é servido, desde que me entendo por gente.

Não a mesma, evidentemente. Ao longo de todos estes anos, da velha Remington Rand no escritório de meu pai, passei pela Underwood, a Olympia, a Hermes Baby, a Hermes 3.000, a Smith Corona, a Olivetti, a IBM de bolinha, algumas de mesa, outras portáteis ou semi-portáteis. Todas mecânicas, com exceção desta última, que é elétrica.

Pois agora aqui estou, pronto a me passar para algo mais sério, iniciar uma nova aventura amorosa. Sim, porque segundo me ensinou minha filha, que entende de ambos os assuntos, os computadores e as mulheres têm uma lógica que lhes é própria e que devemos respeitar. Pois vamos ver como esta computa - e nem o palavrão contido em seu nome sugere-me outra coisa senão que se trata de minha nova e casta namorada.

Assim como para o homem tudo se ilumina na presença da mulher amada, para o escritor este invento é uma forma igualmente luminosa de realizar a sua paixão pela palavra escrita. Não é uma simples máquina de escrever, que funciona como intermediária entre o escritor e a escrita, às vezes se tornando um obstáculo para a criação literária. Ao contrário, o computador estabelece uma surpreendente intimidade com o texto do momento mesmo de sua elaboração. Permite emendas, acréscimos, supressões, transposições de frases e parágrafos com uma velocidade milagrosa. Deve ter alguém lá dentro comandando tudo, provavelmente uma mulher, uma japonesinha, na certa. Ela dá instruções, chama nossa atenção se esquecemos de ligar a impressora, conversa com a gente: "Operação incorreta. Tente de novo". E quando dá certo: "Operação executada com êxito". Só falta acrescentar: "Meus parabéns. Eu te amo!"

Escrever, que durante tantos anos constituiu um tormento para mim, passará a ser um caso de amor. Nunca mais olharei sequer para a máquina de escrever. Serei radical: ou entregar-me a este conúbio com o computador, no suave embalo de suas teclas e no luzente sortilégio de suas letras, ou regredir à solidão do celibato, em companhia da austera e rascante pena de pato.

Imagino só a felicidade de Tolstoi, se pudesse ter escrito todo a "Guerra e Paz" com a mesma facilidade com que passei a escrever esta crônica no computador.

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Minha Nova Namorada - Fernando Sabino, Editora Record - Rio de Janeiro, 1998

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Fernando Sabino morreu hoje, aos 80 anos, no Rio de Janeiro. Sofria de cancêr no esôfago e completaria 81 anos nesta terça-feira.

Se vc ainda não ligou o nome à pessoa, Fernando é aquele que disse: "no fim, tudo dá certo"